“O que tem é um descasamento entre a capacidade de pagamento e o vencimento dessas dívidas no curto prazo”.
Imagine você, cidadão comum, usar essa frase para explicar ao banco que não será possível pagar a parcela daquele empréstimo que venceu na semana passada. Ao mesmo tempo, você acabou de ostentar nas redes sociais que está com um telefone celular de última geração e passeando por aí com um carro elétrico de mais de R$ 700 mil.
Além de deixar mais alguns milhares de reais em juros, o perdão da sua dívida não será concedido. Pelo contrário, haverá um descasamento cada vez maior nesse sentido.
A frase que abre a coluna e serviu para dar esse exemplo estapafúrdio foi adaptada da declaração de Fred Luz, CEO do Corinthians, ao repórter André Hernan, do UOL.
Luz recebeu Hernan no clube, na primeira entrevista exclusiva com o status de CEO do Timão, cargo que ele assumiu sem poder assumir, em meio a um debate de conflito de interesses. Afinal, Luz ainda é sócio da consultora Alvarez & Marsal, que tenta reequilibrar a gestão corintiana, ao passo que também está envolvida com a Liga Forte União (LFU), que negocia direitos comerciais de clubes, entre eles o próprio Corinthians, além de atuar em diversas frentes de projetos de criações de Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs) de clubes pelo país.
Com os pés e as mãos em todas as pontas do negócio, Luz foi rebater uma declaração de Cristiano Dresch, presidente do Cuiabá, que acusou o Corinthians de “dar um golpe no futebol brasileiro”. Ele se referia ao fato do clube paulista dever R$ 14 milhões ao time mato-grossense, não quitar a dívida e, ainda, contratar jogadores a valores exorbitantes, como Memphis Depay, que custará R$ 70 milhões ao longo de dois anos.
Luz foi questionado para rebater a história do “golpe”. Usou o “descasamento” para querer dizer que a dívida de curto prazo que o Corinthians tem é impagável, e que os credores precisam ter compreensão de que, para receber, precisarão aceitar o calote e renegociar o que se deve.
Na prática, o que o dirigente oferece é a solução que o futebol brasileiro pratica desde que começou a ser transformado em um negócio. Promete-se uma coisa, cumpre-se outra e fica a massa falida, que nunca entra de fato em falência. E quem tem a receber? Bom, que se vire para não receber o que se deve. E nem tente penhorar propriedades ou conta de dirigentes. Apesar da lei prever isso, nenhum juiz tem coragem de colocar em prática.
O que acontece é que o futebol vive um descasamento com boas práticas de gestão. Deve-se, não se nega e ainda se vai a público dizer que é isso mesmo. Quem está com dinheiro a receber que pegue a senha, espere para ver e, se estiver vivo até lá, receba sua parte, com sorte ainda de ser próxima do valor original.
O problema é que o descasamento virou regra. Não se questiona o mau pagador, apenas negocia-se maneiras alternativas de receber menos do que se deve. Não se trabalha para evitar novos descasamentos.
Não existe, de quem teria poder para de fato usar a força política para mudar a realidade econômica, qualquer força de vontade para exigir algo diferente.
Tolo é o gestor que sonha com a criação de uma liga única, um futebol brasileiro transformado em produto e um esforço conjunto na transformação do negócio do esporte. Há muita gente que ganha com o descasamento.
Muita empresa de mídia paga uma ninharia pelos direitos de transmissão das principais competições de futebol do país.
Muita agência fatura com consultorias fabulosas. Não em dinheiro, mas recebem ativos valiosos dos clubes em troca da falta de pagamento de comissões. E faturam milhões explorando de graça direitos que valeriam muito mais se estivessem sendo vendidos por quem é de fato o dono do negócio.
Muito patrocinador paga menos do que deve porque o clube não é forte para negociar.
Muito empresário fica com fatias de direitos de venda de atletas por falta de capacidade do clube em pagar os compromissos básicos do dia a dia.
A venda fragmentada de direitos de mídia e comerciais do Brasileirão, sob a bênção da Lei do Mandante, resume bem essa história. Teve muita gente que ganhou nisso, e quem menos vê o dinheiro é o dono da brincadeira.
“Descasamento” é uma palavra formidável para explicar a farra que é o futebol brasileiro. Cada vez mais dinheiro é movimentado. Só que o clube, que deveria abocanhar a maior fatia desse negócio, está longe de ser quem mais fatura.
Erich Beting é fundador e CEO da Máquina do Esporte, além de consultor, professor e palestrante sobre marketing esportivo