Ignorar as receitas de bilheteria é matar o nosso futebol

Chegado o fim de ano é hora de fazermos algumas reflexões. Pelo lado positivo, destacamos que 2022 foi quando finalmente tivemos uma temporada completa com público nos estádios, desde o início da pandemia de Covid-19. Além disso, também merece ser comemorada a primeira vez que o país ultrapassou a marca de 20 milhões de torcedores nos estádios em um único ano. Conforme um relatório da Pluri Consultoria publicado pelo Jornal Lance!, 20,9 milhões de pessoas marcaram presença em jogos de futebol profissional no país.

Mas 2022 não é só motivo de alegrias, muito longe disso. Segundo o mesmo relatório, considerando jogos de campeonatos estaduais, regionais, nacionais e internacionais, os estádios brasileiros tiveram uma taxa de ocupação média de apenas 29,6% das suas capacidades máximas, o que dá 6.344 pagantes por partida, com um valor médio de ingresso de R$ 38,31.

Confesso para vocês que os números de ocupação e pagantes infelizmente não me surpreendem, mas o que realmente ainda me deixa atordoado é a facilidade com que todos os envolvidos no futebol brasileiro normalizam os estádios vazios. O que seria uma catástrofe em muitos setores tradicionais da economia é aceito com uma angustiante tranquilidade na indústria do futebol do país. Ninguém, nem mesmo o torcedor, parece se incomodar quando vê um estádio vazio.

Para entender melhor o que significa para um clube de futebol manter um estádio com menos de 30% da sua ocupação em todos os jogos, vamos fazer um exercício hipotético. Imagine um clube fictício, o Miopia Football Club (MFC). Um clube tradicional que tem uma base de torcedores de 1 milhão de pessoas, na sua maioria moradores da mesma cidade da equipe. O Miopia joga no estádio da prefeitura, que tem capacidade para 21 mil pessoas, paga uma pequena taxa de aluguel e gerencia a operação das partidas, tendo direito a todas as receitas oriundas dos dias de jogos.  

Em 2022, o MFC jogou 27 partidas em casa, entre jogos da primeira divisão do Estadual, Copa do Brasil e Série B do Brasileirão. O clube teve a mesma média de público do restante do futebol brasileiro, ou seja, 6.300 pagantes por jogo, o que representa 30% da capacidade total do estádio. O preço médio do ingresso, R$ 38, também se equivale ao cenário nacional do futebol. Dessa maneira, concluímos que o Miopia arrecadou R$ 6.463.800 em receitas de bilheteria na temporada, fato que foi muito comemorado pela sua diretoria.

No entanto, o que os dirigentes do clube nunca perceberam é que o MFC deixou de ganhar R$ 558.600 por jogo, um total de R$ 15.082.200 no ano, se considerarmos somente os ingressos que não foram vendidos durante as 27 partidas em casa.

É importante ressaltar que aqui estou falando unicamente de receitas de vendas de ingressos. Não estou contabilizando o incremento com arrecadação de bares, estacionamento, venda de camisas e produtos, publicidades no estádio e no clube, pacotes de sócio-torcedor, etc.

Também não vou entrar no mérito do intangível. A atmosfera criada pelos jogos lotados serve de ânimo extra para os atletas em campo. A festa de bandeiras, cânticos, batuques e coreografias, que produz um cenário melhor para a televisão, tornando o produto mais atrativo; o aumento da motivação e do engajamento da torcida on-line e off-line; e muitos outros benefícios que também podem ser conquistados com a melhora da relação entre clube e torcida, que tem como consequência jogos sempre cheios. 

O Miopia Football Club pode não existir de fato, mas no cenário do futebol brasileiro encontramos dezenas de clubes reais em situações muito semelhantes que, ao ignorarem as receitas de bilheteria, deixam escoar pelo ralo valores que poderiam colocá-los em outro nível financeiro e de competitividade.

Faça um outro exercício e idealize o tamanho do ganho para a economia do futebol nacional se todos os clubes das Séries B, C e D tivessem, pelo menos, R$ 15 milhões extras por ano. Seriam capazes de pagar melhores salários para jogadores e funcionários, manter estruturas melhores e investir mais na captação e formação de novos jogadores, entre outras infinitas vantagens que seriam benéficas para os clubes, mas também para todo o universo do futebol brasileiro. 

Agora, extrapolando o ambiente do futebol, imagine se todos os estádios tivessem seus jogos cheios. Visualize milhões de pessoas a mais indo para as partidas duas vezes por semana em todo o Brasil. Um volume tão grande de gente que poderia fazer a roda da economia girar local e nacionalmente. Estou falando da geração de milhares de empregos diretos e indiretos, tanto nos estádios como nos seus entornos.

O torcedor brasileiro não deixou de ser apaixonado por futebol e pelo seu clube, portanto o sinal de alerta precisa ser ligado. Clubes, federações e governos não podem achar normal um estádio de futebol quase sem torcida. O torcedor precisa ser escutado e envolvido para se construir uma jornada positiva para a sua volta às praças esportivas. 

O torcedor não quer só times vencedores, quer também experiências positivas, preços justos, condições de levar os filhos, banheiros dignos, arquibancadas limpas, estádio seguro, bons serviços, atmosfera vibrante e uma série de outros fatores que vão muito além de vitórias e derrotas.

A receita de bilheteria que hoje é ignorada por quase todos os clubes pode ser a plataforma de transformação do nosso futebol e um extraordinário fertilizante natural para a economia do país. Que 2023 possa finalmente mostrar para clubes, federações e até para o novo Ministério do Esporte a importância de se cuidar melhor do torcedor para que ele volte a frequentar e lotar os estádios de todo o Brasil.

Romulo Macedo é head de operações de mídia e serviços de notícias dos Jogos Pan-Americanos e Parapan-Americanos de Santiago 2023 e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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