O Caso Fortaleza/Lucero e a visão da Fifa sobre aliciamento de atletas e proibição de registros

Atacante argentino Juan Martín Lucero foi contratado pelo Fortaleza em janeiro deste ano - Thiago Gadelha / SVM

Nos últimos dias, foi divulgada pela imprensa especializada a punição da Fifa ao Fortaleza, que estaria impedido de registrar jogadores pelas próximas duas janelas de transferência. A decisão está suspensa e ainda pode ser reformada por meio de recurso, mas a notícia causou surpresa e dúvidas ao público em geral.

É certo que os detalhes do caso não são públicos, não sendo o objetivo desta coluna analisá-lo de forma detalhada. No entanto, é possível aproveitar essa situação para tecer alguns comentários acerca do entendimento da Fifa sobre o aliciamento de jogadores e a aplicação de sanção de bloqueio de registros.

Em resumo, o caso diz respeito à rescisão do contrato de trabalho havido entre Juan Martín Lucero e o Colo-Colo (CHI), seu antigo clube. A partir disso, é importante entender como tal situação poderia levar à punição do Fortaleza.

Pois bem. A regulamentação da Fifa elege como um de seus princípios basilares a estabilidade contratual. Assim, a entidade busca incentivar o cumprimento regular dos contratos celebrados entre atletas e jogadores.

Nesse contexto, de acordo com a regulamentação da Fifa, sempre que uma das partes rescindir o contrato de trabalho sem justa causa, deverá pagar compensação à parte contrária. O valor devido poderá considerar uma eventual disposição contratual ajustada entre as partes ou, então, ser arbitrado pela própria Fifa. Ademais, o novo clube do jogador também se torna devedor.

Há, então, uma complexa e interessante discussão quanto à diferença entre as chamadas “buy-out clauses” (cláusulas de liberação) e as liquidated damages clauses (cláusulas penais).

Em síntese, por meio da cláusula de liberação, seria concedida à parte a opção de rescindir o contrato de trabalho antecipadamente, mediante o pagamento de determinado valor. O valor pago não seria, então, punitivo, mas, tão somente, condição para a rescisão antecipada, previamente ajustada entre o clube e o jogador.

Por outro lado, entende-se que as cláusulas penais não autorizam nenhuma das partes a rescindir o contrato de trabalho antecipadamente. O que há, apenas, é o prévio ajuste da consequência financeira em caso de rescisão.

Há, dessa forma, uma diferença sutil quanto à intenção da cláusula: permitir a rescisão antecipada ou apenas facilitar a discussão quanto ao valor devido em caso de descumprimento contratual que leve à rescisão do contrato de trabalho.

No caso concreto, nem sempre a referida intenção será clara, o que poderá trazer discussões práticas (sendo divulgado que é esse o cerne da discussão relativa a Juan Martín Lucero).

O problema se torna ainda mais grave em razão das sanções associativas que podem ser aplicadas em caso de rescisão contratual sem justa causa. Com efeito, tendo em vista que, como dito, a Fifa elege como um de seus princípios basilares a estabilidade contratual, a entidade prevê a aplicação de penalidades quando isso não for respeitado.

Com relação ao atleta, a sanção será aplicada sempre que a rescisão contratual se der dentro do chamado “período protegido”. Esse período abarca os três primeiros anos quando o contrato de trabalho tiver sido assinado com jogadores de até 28 anos ou os dois primeiros anos quando o contrato de trabalho tiver sido assinado com jogadores com mais de 28 anos.

Nesses casos, além de ser condenado a pagar a compensação, o jogador será impedido de atuar por, ao menos, quatro meses, o que poderá ser aumentado para seis meses em circunstâncias excepcionais. Há, porém, exceções referentes a jogos decisivos a serem disputados pela seleção.

De forma similar, também é imposta sanção associativa ao novo clube do jogador quando se entender que este induziu o atleta à rescisão durante o “período protegido”. No caso dos clubes, a penalidade é a proibição de registrar novos jogadores pelo período de duas janelas de transferência.

É digno de nota o fato de que a Fifa presume a ocorrência de indução sempre que uma agremiação contrata um jogador que rescindiu seu contrato de trabalho anterior sem justa causa. Em outras palavras, sempre que contratar um jogador nessa situação, caberá à agremiação comprovar que não aliciou o jogador e que a causa de sua rescisão se deu por motivos alheios à sua futura contratação.

No entanto, deve-se ter em mente que isso impõe um ônus significativo aos clubes, já que não se trata de uma prova fácil de produzir. Destaque-se, nesse sentido, o fato de que, de acordo com o entendimento da Fifa, o contato inicial do clube que pretende contratar um jogador deveria ser com a sua atual agremiação e não com o atleta, o que não costuma ocorrer na prática.

Ressalte-se, então, que, novamente, poderá ser relevante a distinção entre a cláusula liberatória e a cláusula penal.

De acordo com o que foi divulgado, o caso do Fortaleza parece levar ao entendimento de que a Fifa considera o pagamento da compensação e a aplicação de sanções como elementos distintos. Isto é, poderia ser aplicada a sanção mesmo que as partes chegassem a um eventual ajuste com relação ao pagamento do valor devido.

A outra dúvida que fica, então, diz respeito aos efeitos da referida punição de impedimento de registrar novos jogadores.

Mencione-se, desde já, que, no âmbito associativo, essa sanção pode ser aplicada em razão do descumprimento de decisões proferidas pela Fifa, assim como pelo descumprimento de obrigações associativas específicas. Como exemplo, tem-se, justamente, o caso do aliciamento de atletas que mantenham contrato de trabalho com outra agremiação durante o “período protegido”.

A sanção será aplicada tanto em âmbito internacional quanto nacional. Isto é, o clube também será impedido de registrar jogadores para as competições locais.

Recentemente, a Fifa regulamentou a sanção de bloqueio de registro por intermédio da Circular n. 1843. O objetivo foi, então, sedimentar algumas dúvidas frequentes acerca do tema.

Em síntese, tem-se que a sanção se refere, tão somente, a novos jogadores. Não há, assim, nenhum impedimento ao registro de renovações ou prorrogações de contratos com atletas que já estejam no elenco do clube. De forma similar, também é permitido que se registre o retorno de eventuais jogadores que estivessem emprestados ou a conversão de transferências temporárias em definitivas.

Também é importante ressaltar que a sanção se aplica para jogadores do mesmo gênero e da mesma modalidade daquele que tiver levado à punição, sejam eles amadores ou profissionais. De forma excepcional, porém, autoriza-se o registro de jogadores das categorias de base de até 15 anos. 

Isto é, no caso do Fortaleza, tendo em vista que a punição foi aplicada em razão de um jogador de futebol de campo masculino, não haveria impedimentos para registrar, por exemplo, jogadoras de futebol feminino ou jogadores(as) de futsal. No caso do futebol de campo masculino, porém, a punição se aplicaria para jogadores profissionais ou amadores, com exceção dos atletas das categorias de base que tenham menos de 15 anos.

Percebe-se, portanto, que, mesmo sem analisar especificidades do caso, que não são públicas, a situação vivida pelo Fortaleza e por Juan Martín Lucero pode nos suscitar importantes considerações acerca do entendimento da Fifa quanto ao aliciamento de jogadores e quanto à sanção de proibição de registro de novos jogadores.

Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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