O coma ético da sociedade

Diz a lenda que não existiria o Corinthians sem o Palmeiras, o Fortaleza sem o Ceará, o Grêmio sem o Internacional, e assim por diante. A rivalidade sadia e suas diferenças fazem parte do folclore do futebol mundial. E são diversos os fatores que nos fazem torcer por um time: influência dos parentes, ídolos específicos ou simplesmente fazer parte da turminha vencedora do colégio. Mas quando falamos na ética do comportamento, todos apoiamos as mesmas cores. Ou, pelo menos, deveríamos.

Pouca gente sabe, mas muitos anos atrás sofri um acidente de moto e fiquei em coma induzido por uma semana. O procedimento ocorre pela administração de fármacos sedativos que reduzem a função cerebral e mantêm as funções vitais com auxílio de tecnologias disponíveis. Ou seja, a inconsciência é provocada pelo uso de medicamentos controlados prescritos pelos próprios médicos, a fim de auxiliar no tratamento e recuperação da pessoa em estado grave.

Para segurança de todos, o procedimento é realizado em ambiente de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), utilizando ventilação mecânica, aparelho que ajuda o paciente a respirar. Ao mesmo tempo, é realizada uma ampla monitorização de todos os seus dados vitais, diminuindo os riscos de uma parada cardiorrespiratória ou, até mesmo, de reações anafiláticas. Mas o que isso tem a ver com o esporte, a rivalidade mencionada no primeiro parágrafo ou todos os assuntos que sempre escrevo por aqui?

Acredito que a grande maioria dos leitores esteja sabendo do caso de racismo e xenofobia envolvendo Vinícius Júnior, jogador do Real Madrid, e Pedro Bravo, jornalista e presidente da Associação de Agentes Espanhóis. Muitos também viram a resposta do brasileiro, publicada por meio de um vídeo em suas redes sociais. Elegante, direta e visceral.

O que talvez você não tenha visto, um dia após o Real Madrid vencer o Atlético de Madrid fora de casa por 2 a 1, foi o coma induzido praticado pelos periódicos espanhóis a respeito da manifestação dos torcedores locais na porta do estádio. Não, eles não estavam protestando contra ingressos caros, mas sim cometendo atos racistas contra o atleta.

Na coluna de Júlio Gomes no portal UOL, o primeiro parágrafo retrata o efeito ou a consequência desses episódios:

“Nenhuma linha. Nada. Nada de nada. Nas capas dos cinco principais jornais generalistas e dos quatro esportivos da Espanha, não há uma menção sequer sobre o vergonhoso domingo vivido no Estádio Civitas Metropolitano, em Madri.”

A grande diferença do meu acidente com a história envolvendo o atacante brasileiro é que esse coma induzido não foi propositadamente realizado com o intuito de auxiliar no tratamento e recuperação de uma pessoa em estado grave. Pelo contrário: ocorreu por falta de ação. E o que isso quer dizer? Talvez estejamos vivendo um dos maiores e mais perversos comas sociais da idade moderna.

Felizmente, o episódio também “acordou” outras pessoas e gerou um movimento contrário, repudiando o fato, como o texto do jornalista do UOL e as inúmeras manifestações contrárias que vi até agora. Torço muito para que elas cresçam a tal ponto que, ao final de toda essa repercussão, todos estejamos torcendo pelo mesmo time.

É importante reforçar: situações de racismo não são exclusivas da Europa. No Brasil, por exemplo, a alta entre 2020 e 2021 foi de 106% (31 contra 64), lembrando que a torcida se ausentou em março de 2020 e só voltou em outubro de 2021. Ou seja, de dois a três meses de futebol para cada ano. E até outubro de 2022, já haviam sido registrados os mesmos 64 casos do ano passado, indicando uma possível alta até dezembro. Os dados são do Observatório de Discriminação Racial.

Com a palavra final, Vinícius Júnior:

“Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho nos olhos, haverá guerra. Dizem que felicidade incomoda. A felicidade de um preto, brasileiro, vitorioso na Europa, incomoda muito mais. Aceitem, respeitem ou surtem. Eu não vou parar.”

#BailaViniJr

Reginaldo Diniz é cofundador e CEO do Grupo End to End e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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