Iniciar esta coluna ignorando o atual cenário do futebol feminino seria quase um ato de conivência. E justamente em março, mês que deveria exaltar avanços nas lutas das mulheres, nos deparamos com mais um retrocesso. A primeira competição nacional da temporada, a Supercopa, reflete bem esse estado. No modelo atual, oito clubes de sete federações participam. Uma oportunidade rara para times como Sport e Bahia, que subiram para a elite do Brasileirão Feminino 2025 e finalmente ganharam alguma visibilidade na TV (mesmo que seja na fechada), e também para o Real Brasília, clube que não possui o time masculino na elite do futebol.
Mas a entidade que deveria zelar pelo futebol feminino preferiu replicar o modelo masculino, ignorando as particularidades do esporte. A partir de 2026, o torneio de tiro curto, que não possui VAR na primeira fase (o que já é um erro, tendo em vista que são jogos mata-mata), será reduzido a um único jogo. A mudança diminui ainda mais a exposição de mídia e a troca de experiências, e também não incentiva novos negócios, sejam voltados aos clubes ou ao próprio torneio.
Criticar as ideias da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) é necessário. Aliás, anti-ideias seria o termo correto. A entidade ainda não entendeu que masculino e feminino são esportes distintos, com públicos diferentes. Em vez de expandir a visibilidade, embalar melhor o produto, ampliar discussões, incentivar o público no estádio e espalhar a modalidade pelo país (que, vale lembrar, sediará a Copa do Mundo Feminina em dois anos), a decisão foi reduzir o número de jogos. Se eu fosse chutar sobre o motivo, diria que envolve ser um pacote mais atrativo para a TV. Na prática, significa que a final provavelmente contará com o Corinthians na Neo Química Arena, o único clube que construiu um projeto capaz de encher estádios. Assim, fica “fácil”.
“Nós aumentamos a premiação”. Esse é o discurso bonito da CBF, mas, como já pontuei, menos torneio, menos jogos, menos “disseminação” do esporte país afora, menos negócios, menos possibilidades. Todo mundo perde.
A anti-ideia também se reflete na programação da Supercopa em 2025. O torneio começou em uma sexta-feira (7), com um jogo na sexta, um no sábado (8) e, no domingo (9), três grandes torcidas do Brasil (Flamengo, Corinthians e Grêmio) tiveram que dividir sua atenção com dois jogos no mesmo horário. Sendo um torneio de tiro curto, com apenas oito clubes e iniciando no formato de quartas de final, por que não permitir que os torcedores assistissem a dois jogos sequenciais no domingo? Erro.
As semifinais foram agendadas para quarta-feira (12). A primeira, entre São Paulo e Flamengo, ocorreu às 16h (horário de Brasília). Já critiquei muito esse horário no Brasileirão Feminino e continuo a dizer: é um tiro no pé. Provavelmente determinado pela TV aberta, penaliza torcedores que querem ir ao estádio, ou até mesmo acompanhar na TV, tendo em vista que a grande maioria da população está trabalhando ou estudando nesse dia e horário. Isso dificulta a audiência e a presença do fã. Não tem fomento. Qual é o sentido de promover um produto enquanto se sabota seu crescimento? Anti-ideia.
Na outra semifinal, Corinthians x Cruzeiro, disputada às 19h30, o cenário foi pior. O Corinthians, mandante, não poderia usar a Neo Química Arena, pois o time masculino jogaria pela Libertadores às 21h30. O jogo foi deslocado para São Bernardo do Campo, obrigando o fã corintiano a escolher entre apoiar o feminino ou viver a atmosfera de um jogo decisivo da Libertadores. O resultado? 8.949 pagantes no Estádio 1º de Maio. Para aqueles que se acostumaram a ver mais de 30 mil torcedores apoiando o futebol feminino do Corinthians, esse é mais um caso de anti-projeto, anti-futebol, anti-fomento. É a anti-ideia dentro do futebol feminino.
O silêncio conivente do São Paulo
Antes da final, um capítulo especial para o São Paulo. O clube, assim como vários outros, possui perfis exclusivos para o futebol feminino nas redes sociais. No Instagram, fizeram conteúdos em colaboração com o perfil masculino informando sobre a final, e o resultado foi uma enxurrada de ódio gratuito contra as jogadoras. Diante de xingamentos e ataques, o clube nada fez. Nenhum vídeo de conscientização. Nenhuma cartilha educativa. Nenhuma participação de ídolos. Nenhuma ação da CBF. Nenhuma carta de repúdio. Nenhuma matéria na imprensa. Quanto vale criar uma cultura? Quanto vale abraçar um trabalho? Quanto vale proteger e potencializar seus ativos, suas atletas?
É fácil assinar notas de repúdio contra entidades, colar patch “anti” [insira aqui um preconceito]. Difícil é agir. Difícil é a autocrítica. Difícil é transformar. Protegidos em suas salas com ar-condicionado, os dirigentes escolheram a inação.
Dicionário Michaelis:
inação
i·na·ção
sf
1 Falta de ação; inércia, ociosidade: “Virgulino […] esgueirou-se por entre as árvores, seguido pelo rapazola […] e só eles, roçando nos galhos dos arbustos, perturbavam a inação e o profundo silêncio da natureza” (JP).
2 por ext Falta de decisão; indecisão.
3 fig Falta de energia ou de firmeza.
Deixaram suas jogadoras à mercê das hienas antes de uma final nacional, uma reedição da final do Brasileirão Feminino 2024. Criar conteúdo para promover o jogo? Sim. Ensinar a própria torcida a respeitar as suas atletas? Não. A mensagem foi clara: “está tudo bem odiar essas mulheres”. Afinal, desde que comprem ingressos e camisas do time, ninguém se importa. É o atestado do ódio, assinado pela inação dos clubes (e aqui podemos dizer no plural, pois não é algo exclusivamente vinculado ao São Paulo Futebol Clube).
A final
A decisão ocorreu no último sábado (15), às 16h, para ser transmitida em TV aberta. O Morumbis, sem cobertura, recebeu pouco mais de 9 mil torcedores. Torcida única. O que deveria ser uma grande festa, uma grande experiência familiar, no final da tarde de um final de semana, mostrou que o projeto da CBF não está muito longe daquele da Libertadores Feminina que eu critiquei em uma coluna no ano passado. Pouca divulgação, pouco envolvimento, a responsabilidade de atrair o público jogada em um clube que tem muita dificuldade para comunicar, potencializar e proteger as suas próprias atletas. Vamos a um exemplo simples? O trabalho da Globo para divulgar jogos especiais, como o do Criança Esperança, foi melhor executado do que o dos envolvidos nesse que deveria ser o SUPERtorneio, com SUPERjogadoras e SUPERexposição.
Não perderei a oportunidade de fazer uma SUPERcrítica também ao SUPERpatrocinador do mandante da final da Supercopa, que carrega os naming rights da concorrente (Betano), e não aproveitou a SUPERoportunidade para SUPER se conectar com um público escanteado dos eventos esportivos.
Dito isso, essa Supercopa, e as anti-ideias de um projeto de futebol feminino no Brasil, a apenas dois anos da Copa do Mundo de Futebol Feminino, me fazem refletir e questionar sobre o que a CBF, as federações estaduais, o Governo Federal e os clubes pensam e desejam sobre a cultura e o desenvolvimento dos eventos esportivos femininos.
Eme Souza é entusiasta do futebol feminino, estudante de Gestão de Negócios, atua com marketing digital há mais de 12 anos e é analista digital da Máquina do Esporte