Opinião: Incertezas e considerações a respeito do RCE instituído pela “Lei da SAF”

Como amplamente divulgado pela mídia, em meados de 2021, foi promulgada a Lei n. 14.193/2021. Por meio do documento, houve a criação, ao menos no Brasil, da chamada Sociedade Anônima do Futebol, razão pela qual ficou conhecido como “Lei da SAF”. Essa inovação foi recebida por muitos de forma positiva – quiçá até como se se tratasse de um milagre – havendo imediatamente a sinalização de que clubes tradicionais pretendiam aderir ao novo modelo.

No entanto, como costuma acontecer, nem tudo são flores. Afinal, apesar da recepção positiva, a Lei da SAF trouxe ao mundo jurídico e desportivo diversas dúvidas, seja por – de forma proposital ou não – não se aprofundar em determinados assuntos ou por ainda não contar, diante de sua criação recente, com entendimentos consolidados pela jurisprudência ou, até mesmo, pelos estudiosos do tema. Exemplo disso é o caso do Regime Centralizado de Execuções (RCE), que vem ganhando destaque recentemente na mídia especializada.

Assim, esta coluna busca realizar considerações iniciais e apontar algumas das incertezas causadas pelo RCE, sendo certo que seu sucesso parece demandar esforços coletivos. Esclarece-se desde já, porém, que não há a pretensão de esgotar o tema ou de alcançar respostas categóricas para as dúvidas atuais, almejando-se, tão somente, apresentá-las. Para isso, este texto se voltará às seguintes indagações principais:

Pois bem. O RCE, como já indicado pelo nome, é uma forma instituída pela Lei da SAF para centralização das dívidas dos clubes de futebol. Assim, ao invés de haver execuções individuais em varas separadas, decorrentes de diversos processos e com a possibilidade de penhoras paralelas, o que se propõe é a sua reunião.

Haveria, então, a suspensão das execuções individuais, de suas penhoras e de suas demais medidas executivas individuais, devendo as dívidas centralizadas serem pagas mediante observância de determinada ordem. Nesse contexto, a própria lei estabelece alguns parâmetros a serem observados – como o privilégio das dívidas trabalhistas – devendo os demais critérios serem propostos pelo próprio clube, por meio de um plano de pagamento.

É importante esclarecer que, como inclusive já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), o início do RCE deve ser requerido pela agremiação tanto no âmbito da Justiça Comum quanto no âmbito da Justiça do Trabalho. Entende-se, porém, que o plano de pagamento deve ser unitário, abarcando as dívidas de natureza cível e de natureza trabalhista.

Ademais, cumpre apontar que, de acordo com a Lei da SAF, o prazo para pagamento dos credores no RCE é de seis anos. Ao término desse prazo, porém, pode haver sua extensão por mais quatro anos, contanto que a agremiação comprove já ter pagado ao menos 60% de suas dívidas originais. Além disso, ao longo da manutenção do RCE, os créditos seriam atualizados apenas com base na taxa referencial Selic.

Apesar de o RCE ter sido criado pela Lei da SAF, é possível identificar semelhanças desse instituto com outras duas formas de centralização de dívidas: a recuperação judicial e a reunião de execuções trabalhistas.

Com efeito, na recuperação judicial, também há a centralização das dívidas em vara única. Além disso, os créditos são pagos mediante ordem predeterminada, com critérios derivados de lei e de plano de pagamento que, no entanto, deve ser aprovado por parte dos credores.

É importante destacar, ainda, que há a figura do administrador judicial, que auxilia a organização da recuperação judicial e fiscaliza o plano de pagamento. Por outro lado, a recuperação judicial abarca todos os créditos existentes na data de seu início, ainda que não vencidos – isto é, que ainda não tenham se tornado devidos. Assim, cabe aos credores habilitá-los em um momento oportuno.

Convém mencionar que, até pouco tempo, havia dúvida considerável quanto à possibilidade de os clubes de futebol, em sua maioria constituídos como associação, poderem se valer de recuperação judicial. Afinal, entendia-se que essa era aplicável apenas a empresas. No entanto, a questão parece ter sido superada, seja por casos favoráveis ou pela própria redação da Lei da SAF.

Nesse contexto, destaca-se que agremiações como Figueirense, Chapecoense e Coritiba já iniciaram processo de recuperação judicial. 

Já a reunião de execuções trabalhistas, estabelecida pela prática da Justiça do Trabalho, consiste, como indicado pelo próprio nome, na centralização apenas dos processos trabalhistas em fase de execução. Seu objetivo é evitar que a atividade do devedor seja inviabilizada em razão do excesso de execuções paralelas e se tornou comum no caso dos clubes de futebol.

As particularidades das reuniões de execução variam a depender do local e do tribunal envolvido, mas, em síntese, é possível identificar duas modalidades principais.

A primeira delas é o Plano Especial de Pagamento Trabalhista (PEPT), em que há acordo e o próprio devedor destina ao processo quantias mensais predeterminadas para pagamento de suas dívidas. A segunda, por sua vez, é o Regime Especial de Execução Forçada (REEF), em que há a realização de medidas executivas como a penhora, mas de forma unificada, isto é, apenas pela vara em que estão concentradas as execuções.

No entanto, apesar das semelhanças com a recuperação judicial e com a reunião de execuções trabalhistas, deve-se reconhecer que o RCE constitui modelo novo, que não se deve ser confundido com os que já existiam.

A Lei da SAF, porém, optou por não regulamentar de forma detalhada o procedimento do RCE, limitando-se a prever que isso será feito pelo Poder Judiciário. Até o momento, tampouco houve essa regulamentação no âmbito dos tribunais, o que tem causado diversas dúvidas.

Nesse contexto, aponte-se que algumas das varas em que já houve pedido de início de RCE têm se valido das já mencionadas semelhanças desse modelo com figuras parecidas, como a recuperação judicial e a reunião de execuções trabalhistas. No entanto, como já mencionado, esses modelos não devem ser confundidos.  

Um dos questionamentos que já tem sido enfrentado judicialmente diz respeito aos clubes que podem se valer do RCE. Afinal, uma primeira leitura da Lei da SAF pode levar ao entendimento de que o RCE apenas se aplica às agremiações que virarem – ainda que de forma parcial – SAF.

Com efeito, o RCE é mencionado na lei como forma de a agremiação original arcar com suas dívidas mesmo após a criação da SAF. Além disso, há a previsão de que esse pagamento será feito por meio da destinação de parte das receitas da SAF.

Por outro lado, também é possível defender que o intuito da lei foi instituir uma nova forma de pagamento aos clubes de futebol, historicamente endividados como um todo. Até o momento, esse é o entendimento que tem prevalecido nos tribunais, já tendo sido aceito o início de RCE de clubes que não sinalizaram a intenção de se transformar em SAF.

Outra dúvida que tem se mostrado relevante se refere às dívidas incluídas no RCE. Ao tratar do tema, a Lei da SAF parece mencionar, tão somente, processos judicializados. Além disso, ao apontar os documentos que devem ser apresentados juntamente com o plano de credores, mencionam-se as obrigações já em fase de execução e a estimativa auditada das dívidas ainda em fase de conhecimento.

Como consequência disso, pode-se observar que já houve apresentação de um plano de pagamento que, em sua redação, apenas previu a inclusão de créditos decorrentes de ações na Justiça Comum e na Justiça do Trabalho.

O problema é que isso não abrange a totalidade das dívidas que as agremiações possuem.

Pode-se pensar, por exemplo, em créditos que ainda não tivessem sido objeto de ação judicial – seja porque ainda não eram devidos no momento do início do RCE ou porque simplesmente o credor ainda não os havia ajuizado. Poderia esse credor se habilitar no RCE e, se sim, de que forma?

Até o momento, não parece ter havido definição de como se deve proceder nesses casos, o que deve acontecer em um futuro próximo.

A questão se torna ainda mais complexa quando se pensa em créditos cobrados em órgãos esportivos especializados. É o caso, por exemplo, da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD), ligada à Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Como já visto, a CNRD é uma das engrenagens do sistema do futebol organizado, visando a garantir a aplicação de regulamentos da CBF, sobretudo no que se refere às questões econômicas e registrais. E, como também já foi tratado, no âmbito de sua atuação, essa câmara pode aplicar sanções que se operam no mundo esportivo no caso de violação aos regulamentos ou às suas decisões, inclusive nas que condenam determinada parte a pagar o que é devido à outra.

É importante relembrar ainda que, respeitadas as posições em sentido contrário, entende-se que a autorização da CNRD para julgar determinado litígio pode derivar apenas dos regulamentos da CBF (o que se chama tecnicamente de competência associativa) ou dessas normas aliadas à manifestação de vontade das partes (o que se chama tecnicamente de competência associativa e arbitral).

O que tem se indagado, então, é se os créditos cobrados na CNRD, seja por decorrência de competência associativa ou de competência associativa e arbitral, estão incluídos no RCE. Em outras palavras, após determinado clube dar início à RCE, é possível que a CNRD lhe aplique sanções associativas?

Novamente, não houve regulamentação expressa na Lei da SAF, o que traz discussões complexas que ainda não foram resolvidas.

Por um lado, defende-se que o prosseguimento da execução no âmbito da CNRD poderia ferir a isonomia, eis que haveria tratamento diverso aos credores e, possivelmente, desrespeito ao plano de pagamento. Por outro, defende-se que a aplicação de sanções pela câmara possui fundamento diverso das medidas executivas estatais, fundando-se no dever de que os clubes têm de cumprir com as determinações do sistema esportivo organizado, seja em regulamentos ou em decisões.

Nesse contexto, teme-se que a inclusão dos créditos discutidos na CNRD no RCE minimize a efetividade do órgão ligado à CBF, sobretudo no que se refere aos procedimentos que envolvem clubes.

O tema se torna ainda mais difícil quando nos atentamos ao fato de que as decisões proferidas pela CNRD com base apenas em competência associativa não são reconhecidas judicialmente como sentença, não podendo, em regra, serem executadas no âmbito estatal.

É interessante apontar que a análise dos já mencionados procedimentos semelhantes ao RCE também não resolve totalmente o problema. Com efeito, as reuniões de execução trabalhista sempre coexistiram com os procedimentos executivos da CNRD, sem impedir que a câmara aplicasse sanções.

Todavia, no caso da recuperação judicial, como se trata de um instituto que vem sendo utilizado pelos clubes apenas recentemente, a questão ainda não foi decidida. Deve-se reconhecer, porém, que, no âmbito internacional, a FIFA reconhece a possibilidade – e não obrigação – de encerrar um procedimento executivo disciplinar em razão do início de um procedimento de recuperação judicial ou de falência.

A questão parece ser, reitere-se, se o RCE abrange ou não a totalidade das dívidas da agremiação.

Conforme divulgado pela mídia especializada, o tema já foi trazido à tona no âmbito do RCE instaurado pelo Vasco. Afinal, mesmo após o início do RCE pela agremiação, a CNRD lhe aplicou, em razão do descumprimento da decisão que reconheceu o crédito de um empresário, a sanção de um bloqueio de registro de jogadores por seis meses.

Diferentemente do entendimento da CNRD, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro manifestou-se, então, no sentido de que essa dívida deveria ser cobrada no âmbito do RCE. Concedeu-se, então, prazo para que o órgão da CBF se manifeste. Aguarda-se, assim, os próximos capítulos.

Dessa forma, percebe-se que o RCE é uma inovação relevante da Lei da SAF, podendo trazer impacto significativo na gestão dos clubes de futebol e no gerenciamento de suas dívidas. No entanto, em razão da ausência de uma regulamentação precisa de seu procedimento, estão sendo suscitadas diversas dúvidas, que devem ser debatidas em prol da melhor utilização do instituto.

Alice Laurindo é graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados, é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membra da IB|A Académie duSport e escreve bimestralmente na Máquina do Esporte

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