A discussão sobre o controle e a privacidade de dados só tem aumentado a cada ano que passa, com as nossas vidas se tornando mais e mais digitais. Leis como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), no Brasil, e a General Data Protection Regulation (GDPR), na Europa, forçaram empresas dos mais variados setores a adaptar seus modelos de negócio, inclusive contratando especialistas no assunto para evitar as multas pesadas para quem não cumpri-las. Porém, existe uma categoria de indivíduos, talvez alguns dos mais monitorados no mundo, que, até então, tinham pouca coisa sendo falada sobre seus direitos: os atletas de futebol. Isso, entretanto, vem mudando, e recentes movimentos mostram que deve ser um dos assuntos mais importantes do esporte nos próximos anos.
Em 2020, uma publicação do The Athletic citou o Project Red Card, uma iniciativa liderada pelo ex-treinador Russell Slade e o especialista em dados Jason Dunlop, à época reunindo 400 jogadores e ex-jogadores britânicos, que buscavam compensação financeira pelo uso de seus dados de performance por empresas sem seus consentimentos. Hoje, o número de participantes no processo passou de mil e teve a adesão de associações de atletas de outros esportes, como críquete e rúgbi. A reclamação não só gira em torno da comercialização dos dados por terceiros (não os clubes), como de possíveis faltas de acurácia nos mesmos, que podem, segundo os reclamantes, prejudicar carreiras.
Apesar do Project Red Card não citar os clubes e as federações, estes também precisam estar cientes das mudanças que vêm acontecendo. Em setembro de 2022, a Fifa e a Associação Internacional de Jogadores Profissionais de Futebol (Fifpro) lançaram o Charter of Player Data Rights, com foco na implementação de padrões globais na indústria para proteger a privacidade dos atletas e permitir que eles se beneficiem ao terem acesso e controle gerencial sobre seus dados de performance e saúde. O documento fala em oito direitos em relação a dados pessoais:
- Direito de ser informado sobre o dado que está sendo coletado;
- Direito de acessá-lo;
- Direito de revogá-lo;
- Direito de restringir o processamento;
- Direito à portabilidade;
- Direito à retificação;
- Direito de reclamação;
- Direito de apagar.
Junto do Charter, a Fifpro também publicou um relatório interessante, no qual discorre sobre o tema em mais detalhes e mostra uma pesquisa com a opinião de atletas. Alguns pontos que valem ser destacados:
- 80% dos respondentes disseram ter interesse em acessar seus dados de performance individual;
- Metade afirmou não ter acesso ao histórico de dados de performance;
- Metade também disse não saber como os dados são armazenados e como são usados;
- 70% falaram que consideram importante controlar quem pode acessar seus dados individuais.
Recentemente, a Fifpro anunciou que está em busca de parceiros tecnológicos para desenvolver um sistema de gestão de dados centralizado, no qual atletas terão acesso e controle sobre seus dados pessoais. Para a Copa do Catar, disputada no ano passado, a Fifa criou um aplicativo exclusivo para atletas, que puderam ver suas performances em números logo após as partidas. O mesmo foi repetido para a Copa Feminina deste ano, na Austrália e na Nova Zelândia. Há ainda outras iniciativas, como a LaLiga, que em 2020 lançou o Players App (inclusive com possibilidade de compartilhamento das informações e de vídeos/fotos em redes sociais), e a NWSL, a Liga de Futebol Feminino dos EUA, que, em parceria com a Associação de Jogadoras (NWSLPA) e a BreakAway, lançou o Passport App com a mesma finalidade.
Toda essa discussão chama atenção porque os direitos de imagem já são consolidados e parte dos contratos de atletas desde os anos 1990. Claro que os mesmos vêm evoluindo desde então, uma vez que estes jogadores/jogadoras são ativos cada vez mais valiosos e novas propriedades exploráveis são criadas, mas, sem dúvida, o entendimento de que os “artistas do espetáculo” devem ser (bem) remunerados por suas imagens está estabelecido. No caso dos dados, não. Aliás, ainda há discussões sobre o que deve ser posse e monetizado pelo atleta e o que não deve.
Alguns dados de performance (como gols, roubadas de bola e passes) são de domínio público, ou seja, qualquer pessoa assistindo pode fazer essa marcação por conta própria. Já dados médicos, como de exames realizados pelos clubes, por serem de saúde, naturalmente são sigilosos.
Porém, com a evolução dos equipamentos de última geração, criou-se uma categoria intermediária, de novos dados capturados que se encaixam tanto em performance quanto em saúde. Sistemas de captura volumétrica, por exemplo, rastreiam dezenas de pontos do corpo de um atleta e trazem informações biomecânicas e padrões de movimento. Há ainda os coletes, que capturam distâncias percorridas, batimentos cardíacos e outros indicadores de fadiga. E até sistemas de monitoramento de sono. No caso de uma transferência, toda essa montanha de dados fica com o clube? Vai com os(as) atletas? É compartilhada entre as duas partes? Pode ser apagada, caso o(a) atleta deseje?
São muitos questionamentos. Como supracitado, este certamente será um dos assuntos mais quentes do esporte daqui para frente.
E uma coisa me parece certa: se os dados são de fato o novo petróleo (e, sim, apesar do clichê, esta afirmação é verdadeira), aqueles(as) que produzem esses ativos tão valiosos precisam saber como os mesmos são usados e receber suas partes.
Felipe Ribbe é ex-diretor geral da Socios.com no Brasil e ex-chefe de inovação do Atlético-MG. Atualmente, é diretor global de comunidades DTC na AB-Inbev, orientador de startups de Web3 e escreve mensalmente na Máquina do Esporte