É completamente amadora e mal-intencionada a forma como a Conmebol conduz a Libertadores Feminina. Em 2024, o que já era óbvio ficou ainda mais escancarado. Se você, leitor, não conhece o formato, vou te explicar de maneira simples.
O campeonato é realizado em um intervalo curto e apertado de apenas 16 dias, concentrando todas as equipes na cidade-sede. Na fase de grupos, há só um turno, e depois, não importa em qual etapa (quartas, semis ou final), todos os jogos são decididos em partidas únicas. O torneio começa com 16 clubes divididos em quatro grupos, e os dois melhores de cada grupo avançam para as eliminatórias, que seguem no formato mata-mata até a final. Esse tipo de competição, também conhecida como “tiro curto”, auxilia a Conmebol a cortar custos e enxugar o calendário, mas prejudica o nível do torneio e compromete o desenvolvimento do futebol feminino.
A cada ano, é escolhida uma nova cidade-sede para receber a competição. Em 2024, Assunção, no Paraguai, foi o palco. No ano anterior, foram Bogotá e Cáli, na Colômbia, e, em 2022, Quito, no Equador. A ideia de promover o futebol feminino por todo o continente sul-americano parece interessante, mas há questões muito mais profundas que precisam ser resolvidas para tornar o torneio rentável, atrativo e valioso.
No papel, a rotatividade de sedes é uma tentativa de democratizar o futebol e espalhar sua popularidade, mas a realidade é que o formato atual falha em criar uma competição que engaje torcedores e promova uma experiência de alto nível para as jogadoras. Mais do que sede itinerante, o que o futebol feminino precisa é de estabilidade e planejamento de longo prazo. Sem isso, os mesmos problemas continuam: calendário apressado, baixa exposição midiática e falta de incentivo adequado, o que afasta possíveis patrocinadores e mina a confiança do público.
Quando colocamos uma lupa para alguns temas, é nítido observar os problemas da Libertadores Feminina. Em relação à torcida e à atração de fãs, o campeonato não obtém bons números. Apesar da Conmebol não divulgar os dados, é visível o problema ao olhar as fotos e as transmissões dos respectivos jogos.
Se há realmente boa intenção em promover o futebol feminino, elevar os clubes ao mais alto nível e transformar o esporte sul-americano, por que não explorar iniciativas que engajem torcedores e gerem valor para o torneio? A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), quando falha na promoção de algum jogo da seleção masculina de futebol, opta por distribuir ingressos. O desenvolvimento de uma fan fest seria um outro caminho óbvio, e, se a cidade-sede não atrai público suficiente aos estádios, por que não realizá-la em polos como a cidade de São Paulo, onde o futebol feminino já tem um público consolidado?
Após 15 anos de competição, o torneio ainda falha em criar memórias duradouras para os fãs e experiências que conectem o público ao evento. Em uma era movida por redes sociais e experiências digitais, por que não oferecer espaços “instagramáveis” e híbridos que combinem o presencial e o on-line? Essas experiências não apenas promovem engajamento espontâneo, mas aumentam o valor do torneio, fortalecendo os laços com o público.
Se a desculpa para não inovar é o custo, exemplos como a “Caravana do Futebol”, organizada pela Federação Paulista de Futebol (FPF) com o Sesi Araraquara, ativando o patrocínio da Petrobras, mostram que é possível fazer mais com menos. A conexão direta com as comunidades não apenas atrai torcedores, mas também gera relevância e valoriza todos os envolvidos.
No fim das contas, a Conmebol parece não entender que o futebol não se resume a quem levanta a taça, afinal, só há um campeão, mas o que mantém o esporte vivo são as histórias e experiências compartilhadas entre torcedores e atletas. Para que a Libertadores Feminina se torne uma referência, é essencial criar momentos significativos que envolvam seus maiores ativos: os fãs e as atletas. São essas memórias, que vão além das quatro linhas, que constroem conexões duradouras e dão alma ao torneio. Sem isso, o campeonato continuará sendo apenas um conjunto de partidas apressadas, desconectado da paixão que move o futebol.
Outro ponto relevante sobre a dificuldade de mobilizar os torcedores para os jogos é que a Conmebol conseguiu a proeza de alterar o país-sede do torneio e anunciar a mudança com menos de 40 dias para o início da Libertadores. Já imaginou o sufoco que pode (ou poderia) ter ocorrido com os fãs para alterarem passagens, fazer novas reservas ou cancelar hotéis, ou até mesmo para amigos e familiares das atletas, que se planejaram para acompanhar o torneio? Situações como essa são raras em eventos masculinos, a menos que ocorra algum fator extraordinário, como desastres naturais, instabilidade política ou questões de segurança, que não são o caso aqui. Em um comunicado oficial, a Conmebol não apresentou justificativa; o que se sabe é que a Federação de Futebol do Uruguai abriu mão de sediar o evento, também prejudicando o Nacional, que tinha vaga garantida por ser o representante do país-sede, e que provavelmente se preparava emocionalmente, psicologicamente e tecnicamente para o evento.
Infraestrutura precária expõe descaso com atletas profissionais
Embora o transporte das equipes esteja sob responsabilidade da Conmebol, conforme previsto em regulamento, as condições oferecidas estão longe do aceitável. A atacante Gabi Zanotti, do Corinthians, mostrou em suas redes sociais o estado do ônibus fornecido para o clube, revelando uma situação que dificilmente seria imposta a times amadores. Além do transporte inadequado, as jogadoras enfrentaram vestiários de baixa qualidade e a impossibilidade de realizar aquecimento no campo onde disputaram as partidas.
Outro problema crítico foi a sobrecarga dos gramados. Dois jogos foram realizados por dia no mesmo campo, o que comprometeu sua condição e afetou o desempenho das atletas. Como se não bastasse, faltou infraestrutura básica, como drenagem adequada. Isso obrigou as jogadoras a disputarem partidas eliminatórias em gramados encharcados, colocando em risco sua segurança e prejudicando a qualidade técnica dos jogos.
A situação contrasta com o discurso da Conmebol de promover e fortalecer o futebol feminino. Afinal, onde está o esforço real para esse desenvolvimento? Nos ônibus precários denunciados por Zanotti? Nos vestiários insuficientes ou na gestão irresponsável dos gramados? É inadmissível que a maior entidade de futebol da América do Sul ofereça condições tão inferiores para um torneio sediado na capital de um país. Isso não é apenas uma falha organizacional; é um desrespeito ao esporte e às atletas envolvidas.
Trago mais dois fatos para corroborar a minha tese de ações vergonhosas da Conmebol. O primeiro refere-se à falta de aplicação da tecnologia do VAR na fase de grupos do torneio. Entendo que, se é o maior torneio da entidade, deve-se fazer jus a isso. Talvez para o olhar dos negócios não fique tão evidente a ação, mas se um clube injustamente não consegue classificação para a próxima fase do torneio, existindo a tecnologia em mãos e escolhendo não utilizá-la, haverá menos exposição dos patrocinadores que acreditaram no projeto daquele determinado clube e é retirada dele a possibilidade de alcançar uma das premiações da competição, que é o meu segundo ponto.
É difícil olhar para os “esforços” feitos em prol do futebol feminino e não comparar as condições que são oferecidas aos homens. Não entrarei no limbo de técnica, história e outros pontos que são muito importantes, mas que gerarão uma falsa visão até o ponto que acredito ser importante. Na Libertadores Feminina, a Conmebol oferece passagens, hospedagens, alimentação e premiação a 28 pessoas, sendo 20 atletas e 8 membros da comissão técnica. Na Libertadores Masculina, são 55 medalhas, ou seja, quase o dobro. Ok, os custos de transporte, hospedagem e alimentação são de responsabilidade dos clubes, mas a premiação por participação na fase de grupos do evento masculino é de US$ 3 milhões + US$ 300 mil por vitória, valor que não é atingido nem mesmo pelo campeão do torneio feminino.
- Campeão: US$ 2 milhões
- Vice-campeão: US$ 600 mil
- Terceiro lugar: US$ 250 mil
Certamente virá alguém, e há uma alta probabilidade de ser um homem, que dirá que “o futebol feminino não é lucrativo”. Realmente, em sua maioria, não é. Quando não há um trabalho sério, quando não há uma boa intenção para tal, quando não há um posicionamento de lideranças em prol do esporte feminino, de fato ele vira uma depreciação de caixa, mas se empresas, clubes e principalmente as entidades esportivas não mudarem essa visão, a situação se manterá amadora, como muitos mal-intencionados pretendem que continue.
Aqui mesmo, na Máquina do Esporte, já provei que é uma falácia a respeito do futebol feminino essa tal história de torcida pequena, falta de lucratividade ou interesse do público. Trazendo para uma realidade próxima, o Corinthians já colhe seus frutos, e há outros clubes (principalmente paulistas) que também estão no bom caminho, assim como há outros tantos exemplos pelo mundo, como a WSL (Inglaterra) e a NWSL (Estados Unidos).
A Conmebol não pode se manter como uma entidade promotora de situações esdrúxulas, e por que não dizer até preconceituosas, com o esporte feminino. Enquanto a visão for de “favor” para as atletas profissionais ou “ajuste para igualdade de gênero do protocolo da Fifa”, o torneio se manterá vergonhoso. Isso matará o próprio produto da confederação.
Talvez o mais doloroso para quem é atleta, é a ciência de que, em teoria, ali deveria ser o ápice da glória dos clubes sul-americanos, mas a realidade ainda é bem distante disso. Para aqueles que trabalham na promoção da indústria esportiva, como eu, o sentimento é de frustração e vergonha diante do poderio nas mãos de uma entidade e a realidade da sua capacidade intencional de entrega de um torneio muito aquém para os fãs, a mídia e os patrocinadores.
Eme Souza é entusiasta do futebol feminino, estudante de Gestão de Negócios, atua com marketing digital há mais de 12 anos e é analista digital na Máquina do Esporte.