Com atletas cada vez mais jovens, como fica a escola?

Bronze em Paris 2024, Rayssa Leal afirmou que voltará à escola ao retornar ao Brasil - Reprodução / X (@rayssaleal)

“A educação não transforma o mundo. Transforma pessoas. E as pessoas transformam o mundo”.

A frase de Paulo Freire pode perfeitamente ser utilizada para explicar o potencial do impacto da educação no futebol. Uma pessoa melhor será sempre um atleta melhor. Tema já abordado aqui. E esta coluna é o desdobramento das duas anteriores, alinhavando um racional que merece espaço e atitude na indústria do futebol.

Na coluna do mês de junho, abordei o quão relevante é pensar estrategicamente e alocar recursos adequados para a formação integral do atleta de futebol. Isso inclui desenvolvimento emocional, financeiro, cognitivo, de aspectos ligados ao posicionamento da marca pessoal e vários outros que compõem as múltiplas habilidades demandadas do atleta atual. Essa reflexão colocou luz na ideia de ter a escola no centro dessas ações e, com isso, garantir algo que já é direito de toda criança e adolescente: os estudos na escola, o ensino formal e regular.

Motivada por essa pauta, realizei e compartilhei, na coluna de julho, uma conversa com meu filho, Lucas Rosa, atleta de futebol de 24 anos, que atualmente joga no Real Valladolid, da Espanha. Fomos para além da educação escolar, mas iniciamos nosso papo por esse ponto.

Quando perguntei como ele enxerga hoje em dia o meu esforço (junto do seu pai) para mantê-lo na escola, a resposta foi: “Hoje é fácil eu entender e ver o quanto foi importante essa insistência de vocês, mas, para mim, era muito difícil entender porque realmente o entorno, no meio do futebol, o normal era não ir para a escola, não estudar, só focar no futebol, e eu estava me vendo ali tendo que fazer outra coisa, que não era o normal”.

O relato do Lucas representa uma realidade que merece atenção. Nós, profissionais de gestão do futebol, devemos buscar formas para que o “normal” entre os atletas seja estudar (e não apenas estar matriculado) e compreender que o desenvolvimento que vem da escola é tão importante quanto aquele que vem das horas de treino no campo ou na academia. Como já dito por aqui: um atleta com formação integral sempre terá maiores chances de sucesso e estará mais preparado para atingir o seu potencial máximo.

A coluna deste mês é dedicada a dar mais um passo nesse entendimento e ir na direção da participação da escola nesse processo de formação integral.

Vale ressaltar, até para argumentar sobre a importância do tema, que a alta performance chega cada dia mais cedo para atletas de diferentes modalidades. Chega, muito frequentemente, em idade escolar.

Rayssa Leal é duas vezes medalhista olímpica aos 16 anos. Endrick é ídolo e um ativo valiosíssimo, com passagem pelo Palmeiras e hoje no Real Madrid, aos 18 anos. Lamine Yamal, fenômeno destacado em um uma das principais competições do mundo, a Euro, aos 17 anos. Lucas Flora, uma criança de apenas 10 anos que treina no Corinthians, ganhou manchetes nos principais veículos de comunicação do Brasil, sendo chamado de “joia”, “craque” e sendo envolvido em especulações e certa polêmica quanto a uma possível troca de clube.

Esses atletas são representantes de uma realidade: o “negócio futebol” olha para essas crianças e adolescentes cada dia com maior precocidade.

Isso significa que o desempenho esportivo (e para além dele) não depende da maioridade, e está cada dia mais evidente que os atletas que estiverem melhor preparados terão maiores chances nesse mar de oportunidades e desafios.

Rayssa Leal disse, em uma entrevista durante as Olimpíadas de Paris, que seus planos para quando voltar ao Brasil envolvem a retomada aos estudos. Ela disparou sem pensar duas vezes: “Vou estudar. Nossa, por que você foi me lembrar? Óbvio que vou comemorar, mas voltaram as aulas. Agosto, né?”.

Essa fala reflete a prioridade na formação escolar, e sua desenvoltura para além da performance esportiva (tão admirável quanto sobre o skate) nos faz pensar que essa escolha valoriza o desenvolvimento intelectual e está de fato potencializando o sucesso na jornada profissional. Os ganhos acontecem dentro e fora do esporte. Por exemplo: o posto de primeira brasileira nomeada embaixadora da Louis Vuitton é uma amostra de como seu posicionamento pessoal tem o valor reconhecido para além das pistas em que compete.

Sendo assim, a pergunta que não pode ficar sem resposta é: o que precisa ser feito para preservar e valorizar o processo de formação escolar dos jovens que estão iniciando a jornada no esporte?

A resposta certamente oscilará de acordo com cada ambiente, com cada cenário e com os recursos de cada clube. No entanto, qualquer que seja o contexto, deve ser inaceitável negligenciar essa responsabilidade que é direito das crianças e adolescentes e, para além disso, essencial para o desenvolvimento humano que resultará em um esportista e ser humano melhor.

Para aqueles que estão no grupo antiquado, de quem considera inviável garantir efetividade na conciliação entre formação esportiva e jornada escolar, sugiro que estejam atentos às ações efetivas, vistas cada dia com maior frequência.

Para ilustrar, destaco a divulgação feita em fevereiro deste ano pelo Ceará, time que teve quatro dos seus atletas da categoria Sub-20 matriculados em um curso de graduação em Educação Física.

Notícias como essa estimulam a reflexão sobre o quanto o estudo dos atletas amplia não somente o potencial de maior sucesso dentro dos campos, mas também as chances de atuação para além do desempenho esportivo.

Considerando que o famoso “funil” é muito estreito e uma porcentagem muito pequena chagará à alta performance e a níveis realmente significativos de ganhos financeiros, a ideia de preparar jovens que atuam em categorias de base para seguirem a jornada profissional fora dos gramados é também uma forma de garantir uma indústria cada dia mais qualificada e conduzida por profissionais com a valiosa união entre vivência na modalidade e qualificação formal.

Ainda ampliando a visibilidade de iniciativas focadas no estudo formal dos jovens e crianças atletas, destaco o belíssimo trabalho realizado pelo Instituto Vinicius Júnior. Os resultados têm sido cada dia mais significativos e apontam para outra vertente do potencial do futebol se conectar com a educação formal. No caso desse instituto, o futebol é utilizado como ferramenta de desenvolvimento de jovens e crianças em escolas públicas. Isso é feito utilizando a marca pessoal do ídolo, que inspira e conecta e, também, utilizando a metodologia desenvolvida a partir do futebol. Victor Ladeira, diretor-executivo do instituto, compartilhou anteriormente (de forma exclusiva para a audiência da Máquina do Esporte) sua visão sobre o trabalho que desenvolvem e os impactos que estão conseguindo por meio disso.

O Sfera, clube-empresa fundado em 2021 e que se declara “um clube de impacto social, criado por pessoas apaixonadas por futebol, que enxergam o esporte como agente de transformação da sociedade e de todos os envolvidos no Processo Sfera”, divulgou recentemente uma parceria com a Tufe, escola de idiomas especializada em atletas de futebol. O foco será o desenvolvimento da língua inglesa entre os atletas da base.

Todos esses exemplos são para que não fiquem dúvidas sobre a evolução gratificante e, especialmente, sobre a viabilidade de fazer a formação dos atletas respeitando e valorizando o desenvolvimento escolar.

A prática de quem tem colocado essa questão entre as prioridades da formação dos atletas de futebol enfraquece o argumento até pouco tempo utilizado de que há incompatibilidade entre os processos de desenvolvimento na escola regular e no futebol. A ideia de que é preciso “focar” exclusivamente no esporte quando se pretende avançar na carreira está ultrapassada e deve ser combatida, pois leva exatamente para a direção oposta. A escola e o gramado devem estar em equilíbrio no processo de desenvolvimento do atleta.

Pretendo, com esta coluna, conectar falas que circundam esse tema essencial para a indústria do futebol, para o desenvolvimento dos nossos atletas e para a garantia do valor da “marca futebol brasileiro” por meio de esportistas cada dia mais competitivos e preparados para elevarem o nome do nosso país dentro e fora dos gramados.

Está conosco a tarefa de colocar o tema na devida prioridade e criar condições para que as iniciativas sejam cada dia mais frequentes e efetivas.

Ana Teresa Ratti possui mais de 20 anos de experiência corporativa, é mestra em Administração, trabalha atualmente com gestão esportiva, sendo cofundadora da Vesta Gestão Esportiva, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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