Lassana Diarra: Entenda como o caso pode chacoalhar o mercado de transferências no futebol

Lassana Diarra vestiu a camisa do Lokomotiv Moscou entre 2013 e 2014 - Reprodução

Nos últimos dez dias, a comunidade do direito desportivo vem debatendo os impactos da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), envolvendo o ex-jogador de futebol francês Lassana Diarra (a íntegra da decisão está disponível em francês). Esta coluna se volta, portanto, a expor o que foi decidido no caso, assim como destacar possíveis impactos futuros.

De início, convém destacar que, de acordo com a regulamentação atual da Federação Internacional de Futebol (Fifa), o atleta que rescindir um contrato de trabalho sem justa causa deve pagar indenização ao seu ex-clube.

O valor dessa indenização pode seguir um eventual ajuste contratual – que cumpra com determinados requisitos – ou, então, ser calculado com base na lei do país envolvido, das especificidades do esporte ou outros critérios definidos pelo julgador. Em especial, recomenda-se que seja considerada a remuneração do jogador, o tempo que faltava em seu contrato e as despesas que seu ex-clube suportou para lhe contratar. Percebe-se, portanto, que se trata de um cálculo casuístico, que, a princípio, nem sempre poderá ser estimado.

O regulamento da Fifa também estabelece que, caso o jogador que rescinda seu contrato de trabalho sem justa causa seja contratado por uma nova agremiação, esta também será responsável pelo pagamento da indenização devida ao ex-clube. Além disso, também poderá haver empecilhos ao registro do jogador.

Por fim, caso a rescisão se dê dentro do chamado período protegido, serão aplicadas sanções esportivas ao atleta (que não poderá jogar por 4 a 6 meses) e à nova agremiação (que ficará impedida de registrar novos jogadores por duas janelas de transferência).

Nesse sentido, vale apontar que a Fifa elenca como um dos princípios basilares de sua regulamentação justamente o cumprimento, pelos atletas e pelos clubes, dos contratos assinados (estabilidade contratual).

Pois bem. É justamente nesse contexto que se insere o Caso Lassana Diarra. Supostamente, o jogador rescindiu sem justa causa seu contrato com o Lokomotiv Moscou (oficialmente Futbolniy Klub Lokomotiv). O clube russo entrou, então, com uma ação contra o atleta na Fifa.

Tendo em vista, porém, que uma eventual nova agremiação também seria responsável pela indenização devida ao Lokomotiv Moscou, o jogador teve dificuldade para se reinserir no mercado.

O Charleroi (oficialmente Royal Charleroi Sporting Club), da Bélgica, demonstrou interesse em contratá-lo, contanto que ele pudesse ser regularmente registrado e houvesse a garantia escrita de que a agremiação não teria nenhuma responsabilidade sobre uma eventual indenização devida ao Lokomotiv Moscou. O jogador, porém, apesar de ter tentado perante a Fifa, não conseguiu preencher esses dois requisitos.

Em maio de 2015, o jogador foi condenado pela entidade que comanda o futebol mundial a pagar ao Lokomotiv Moscou uma indenização no valor de € 10,5 milhões. Essa decisão foi confirmada pela Corte Arbitral do Esporte.

Lassana Diarra, então, ajuizou perante a corte estatal belga uma ação contra a Fifa e a Real Associação Belga de Futebol (RABF) cobrando uma indenização em razão dos prejuízos à sua carreira causados pela situação acima. Em 2017, a Fifa e a RABF foram condenadas a pagar uma indenização ao jogador.

A questão foi submetida ao Tribunal de Justiça da União Europeia para analisar se a regulamentação da Fifa feria o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Em especial, analisou-se se havia violação ao direito dos trabalhadores europeus à livre circulação dentro do território da União Europeia e/ou à impossibilidade de restringir a livre concorrência entre países da União Europeia.

O entendimento foi de que as regras da Fifa acerca das consequências – esportivas e patrimoniais – à rescisão sem justa causa de um contrato de trabalho pelo jogador violariam esses dois aspectos do TFUE.

No entanto, é interessante notar que, segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia, eventuais regras que ferissem esses direitos até poderiam ser admitidas, contanto que se voltassem a um fim legítimo e que respeitasse o TFUE e fossem proporcionais, isto é, que perseguissem esse objetivo da maneira menos prejudicial possível.

Em razão disso, a decisão do Caso Diarra faz muito mais do que simplesmente analisar se a regulamentação da Fifa está de acordo com o TFUE. Há, na realidade, uma análise profunda dos objetivos perseguidos por essas normas e se há ou não proporcionalidade.

Nesse sentido, há, uma vez mais, a confirmação, pelo TJUE que as especificidades do esporte justificam a adoção de uma regulamentação própria. Além disso, ainda chancela-se a ideia de que podem ser aplicadas sanções específicas no âmbito esportivo para garantir que essas normas sejam respeitadas.

Segundo a Fifa, as regras em discussão se relacionariam com uma série de objetivos, em especial manter a estabilidade contratual, garantir a integridade das competições e proteger os atletas profissionais de futebol.

O Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu que a garantia da integridade das competições é um objetivo legítimo e que, para alcançá-lo, pode haver, em certa medida, uma preocupação com o cumprimento dos contratos de trabalho. No entanto, segundo a corte, a estabilidade contratual, tida como um dos pilares da regulamentação da Fifa, não deveria ser um objetivo geral em si mesmo, mas sim uma forma de viabilizar o bom funcionamento dos campeonatos.

Além disso, entendeu-se que as consequências à rescisão sem justa causa do contrato de trabalho pelo atleta não seriam proporcionais. Por um lado, foi considerado exagerado acumular tantos impactos, como condenação ao pagamento de indenização, responsabilização da nova agremiação, aplicação de sanções esportivas e dificuldades para o registro do novo vínculo.

Também foi questionada a forma de calcular a indenização devida, considerando que o critério de “especificidades do esporte” seria excessivamente genérico, abrindo a possibilidade de julgamentos discricionários. Em razão disso, seria difícil ao jogador e à sua nova agremiação preverem o risco de condenação futura, o que dificultaria de forma ilegítima a reinserção do atleta no mercado esportivo.

Outro aspecto questionado foi a presunção de que a nova agremiação teria aliciado o jogador. Afinal, segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia, isso possibilitaria a aplicação de sanções esportivas à agremiação mesmo sem que houvesse qualquer indício de descumprimento das regras esportivas.

A conclusão foi, portanto, que essas regras limitariam, de forma ilegítima, a circulação de trabalhadores esportivos europeus dentro da União Europeia, assim como afetariam a livre concorrência entre clubes europeus.

Resta saber agora qual será a reação da Fifa a essa decisão. É possível supor que os questionamentos formulados pelo TJUE, sobretudo no que se refere ao destaque dado à estabilidade contratual e à forma de cálculo de uma eventual indenização por rescisão sem justa causa de um contrato de trabalho, levarão a novas discussões para possíveis alterações dos regulamentos do futebol.

É o momento, portanto, de refletir sobre esses pontos e pensar qual será a melhor forma para aprimorar as regras vigentes.

Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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