Potenciais e riscos acerca do projeto de nova lei geral do esporte

Ao longo das últimas rodadas do Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino – Edição 2022, observou-se o protesto dos atletas às disposições trabalhistas do projeto de Nova Lei Geral do Esporte. O referido cenário se estendeu para as redes sociais, evidenciando conflito entre a opinião de parte dos clubes e a de seus elencos.

Ocorre que, apesar de o projeto de lei que propõe Nova Lei Geral do Esporte já ter sido aprovado pelo Senado e encaminhado para sanção presidencial, constata-se que suas disposições ainda são de pouco conhecimento do público em geral, razão pela qual se mostra relevante realizar breves considerações sobre o tema.

Diante do espaço desta coluna, adverte-se desde já que não se tem a pretensão de esgotar o assunto. No entanto, ao longo deste texto, busca-se abordar de forma sucinta (i) a atual lei geral do esporte e os desafios e potenciais de sua alteração; (ii) os principais pontos do projeto que tem sido alvo de protesto pelos atletas e (iii) algumas previsões interessantes desse documento.

A atual lei geral do esporte e os desafios e potenciais de sua alteração:

Pois bem. Atualmente, os marcos gerais da atividade esportiva no Brasil são regulamentados pela Lei n. 9.615/98, conhecida popularmente como Lei Pelé. Como é conhecido, através desse documento, houve a extinção da figura do passe, adequando a legislação brasileira ao padrão internacional e contribuindo para a liberdade de trabalho dos jogadores profissionais.

Ressalte-se que o referido documento já foi alvo de diversas reformas, possuindo redação diversa de sua versão original.

No entanto, a Lei Pelé não é a única fonte de regras aplicável ao esporte brasileiro. Como já mencionado em outras colunas, a atividade esportiva é consideravelmente interdisciplinar, sendo regida por diversas leis.

Com efeito, há outros documentos normativos específicos ao meio esportivo, como o Estatuto do Torcedor (Lei n. 10.671/2003), a Lei do Profut (Lei n. 13.155/2015) e a recente Lei da SAF (Lei n. 14.193/2021). Além disso, aplica-se de forma subsidiária – ou seja, nos casos em que não houver regras específicas – as leis gerais do ordenamento brasileiro, como a Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”) e o Código Civil (“CC”).

Como se não bastasse, há, ainda, normas próprias elaboradas pelo próprio meio esportivo, como os regulamentos da CBF e da FIFA.

Como se pode imaginar, essa profusão de regras traz dúvidas nos casos concretos a respeito das normas que devem ser consideradas. Assim, não é raro que haja, por exemplo, discussões jurisprudenciais acerca da possibilidade ou não de aplicar determinada regra trabalhista geral, disciplinada na CLT, aos atletas profissionais de futebol.

Além disso, alguns aspectos da Lei Pelé são alvo de críticas pela doutrina especializada e, até mesmo, pelos amantes do esporte. Pode-se mencionar, por exemplo, a especial ênfase que o documento parece dar ao futebol, havendo previsões de difícil utilização para outras modalidades esportivas.

De forma mais complexa, há também quem entenda que essa lei reduziu os direitos dos clubes, ao possibilitar que os atletas se vinculem gratuitamente a novas agremiações após o término de seus contratos de trabalho.  

É importante considerar, ainda, que a atividade esportiva se mostra consideravelmente dinâmica, de modo que, desde a edição da Lei Pelé, ganharam destaque novos fenômenos que devem ser regulamentados.  

Diante disso, a ideia de reformar ou substituir a Lei Pelé não representa, em si, um problema, podendo ser oportunidade para aprimoramentos. Afinal, seria possível aproveitar esse momento para (i) modernizar a regulamentação esportiva; (ii) unificar as leis específicas do esporte e (iii) reduzir algumas incertezas a respeito das regras aplicáveis em determinadas situações.

Tal cenário poderia, até mesmo, reduzir os litígios relacionados à atividade esportiva, que, como já exposto, não raras vezes, têm por objeto as divergências a respeito das regras aplicáveis ao caso.

No entanto, não se pode desconsiderar o fato de que a Lei Pelé também representou avanços na legislação trabalhista, de modo que eventual reforma não deve desconsiderar os passos já percorridos na busca pelo aprimoramento do direito desportivo.

Os principais pontos do projeto que tem sido alvo de protesto pelos atletas:

As disposições trabalhistas do projeto de lei suscitaram protestos dos atletas profissionais de futebol. Analisando a sua redação atual, constata-se que, de fato, há significativas alterações no âmbito do direito do trabalho dos jogadores. Para melhor compreensão da discussão, elenca-se abaixo algumas delas:

É notório que, no âmbito do esporte profissional, os clubes comumente pagam aos seus jogadores bônus em razão de sua contratação (luvas) ou de seu desempenho esportivo (bicho).

Atualmente, o art. 31, §1º, da Lei Pelé, estabelece que gratificações ou prêmios pagos aos jogadores que estejam incluídos no contrato de trabalho possuem natureza de salário. Isso é, tais valores são considerados para fins de reflexos salariais, como cálculo do FGTS, das férias e do 13º salário.

O art. 85, §9º do projeto de lei, por sua vez, dispõe de forma diversa, o que reduz os reflexos trabalhistas incidentes aos jogadores.

Convém expor, porém, que o tema já é alvo de discussões mesmo diante da redação atual. Com efeito, é comum que as luvas sejam ajustadas em contrato de imagem e que o bicho seja objeto de contratação verbal, o que dificulta consideravelmente o reconhecimento da natureza salarial.

O contrato especial de trabalho desportivo, celebrado entre os atletas profissionais e os clubes, possui prazo determinado. Ademais, como forma de garantir o respeito a esse prazo, é obrigatório que contenham cláusula compensatória.

Em termos simplificados, trata-se de multa que é devida aos jogadores nos casos de rescisão indireta causada por culpa da agremiação (ao não pagar salário, por exemplo) ou de dispensa sem justa causa.

O valor da cláusula compensatória é estabelecido livremente entre as partes, de acordo com parâmetros legais. Normalmente, ela é fixada no patamar mínimo permitido, qual seja, o valor total de salários mensais a que o jogador teria direito até o fim do contrato.

No modelo atual, com a rescisão, esse valor seria devido ao jogador em parcela única. 

Constata-se, assim, que a cláusula compensatória configura forma de garantir que os clubes respeitem o prazo estabelecido entre as partes para duração do contrato e, até mesmo, sejam cautelosos nos termos oferecidos aos jogadores no momento de sua contratação.

Apesar disso, o projeto de lei traz alterações significativas no tema. Com efeito, há a previsão de que a cláusula compensatória será paga de forma parcelada, devendo haver o pagamento mensal, nos mesmos termos em que o salário seria pago caso o contrato não tivesse sido rescindido.

Dessa forma, apenas haverá o vencimento antecipado das parcelas vincendas e a possibilidade da cobrança judicial do valor total devido pelo clube caso a agremiação deixe de pagar ao menos duas parcelas.

Ainda mais relevante e polêmica, porém, é a previsão de que as parcelas deixarão de ser devidas caso o atleta seja contratado por nova agremiação mediante salário igual ou superior ao anterior. No caso de o novo salário ser inferior, apenas será devida pelo ex-empregador a diferença.

Ressalte-se que os clubes frequentemente utilizam judicialmente o argumento da possibilidade de reduzir o valor da cláusula compensatória em razão de novo contrato do atleta. No entanto, não é comum que essa defesa seja aceita.

Somando-se a isso o fato de que é extremamente corriqueiro que os atletas sejam rapidamente contratados por nova agremiação após a rescisão antecipada de seu contrato de trabalho, constata-se que essa alteração traz impactos significativos aos jogadores.

Também não são raras as discussões atuais acerca da possibilidade de os atletas profissionais de futebol receberem adicional noturno (Vide, nesse contexto, o seguinte trabalho: Divergências sobre a concessão do adicional noturno aos atletas profissionais de futebol, de Lissa Tomyama). Afinal, é comum que as partidas aconteçam à noite.

Nos termos da CLT, no caso do trabalho urbano, considera-se como noturno aquele realizado entre das 22h às 5h, o que abrange o horário de muitos jogos.

O projeto de lei, porém, estabelece que, para os atletas profissionais, o período considerado noturno é das 23h59 às 6h59, o que deverá reduzir significativamente as hipóteses de cabimento de adicional noturno.

Não é de hoje que se observa que parte da remuneração dos jogadores é paga a título de direito de imagem. Em muitos casos, isso se justifica em razão da efetiva utilização da imagem do atleta pelo clube. Em outros, porém, a prática parece estar atrelada a uma tentativa de diminuir os reflexos salariais do valor pago. Pois bem. Atualmente, a Lei Pelé estabelece que até 40% da remuneração do jogador poderá ser paga a título de direito de imagem. O projeto de lei, porém, aumenta esse percentual para 50%, o que trará, então, redução em até 10% dos reflexos salariais devidos ao atleta.

Algumas previsões interessantes do Projeto de Lei:

Apesar das polêmicas em razão das disposições trabalhistas, o Projeto de Lei também traz previsões interessantes. Assim, para não dizer que não falamos das flores, mencionam-se algumas delas.

Um ponto relevante do Projeto de Lei é o aumento das exigências legais para que um clube seja considerado formador. Assim, amplia-se a proteção dos atletas em formação.

Outra questão digna de nota diz respeito à rescisão indireta no caso de inadimplemento do clube. Nos termos da Lei Pelé, isso dependia do atraso, em todo ou em parte, no pagamento da remuneração do jogador por mais de três meses. Já no Projeto de Lei, o prazo foi reduzido para dois meses, aproximando-se, assim, do modelo estabelecido pela FIFA.

Também é relevante a previsão de que, no caso do futebol, o primeiro contrato de trabalho não poderá ser superior a três anos. Ocorre que, no modelo atual, há incompatibilidade entre a regra da Lei Pelé, que autoriza a contratação por até cinco anos, e as previsões da FIFA, que apenas reconhecem, no âmbito internacional, a vigência de contratos de trabalho envolvendo menores de idade por três anos.

Tal situação representava, inclusive, um risco aos clubes, que enfrentavam problemas caso agremiações internacionais buscassem contratar tais jogadores nos últimos anos de contrato.

O Projeto de Lei também traz avanços para o direito das mulheres no esporte.

Com efeito, há a previsão de que apenas poderão ser beneficiadas com repasses de recursos públicos federais as entidades de administração do desporto (confederações e federações) e os clubes que assegurem a presença mínima de 30% de mulheres nos cargos de direção e que garantam a isonomia entre atletas homens e mulheres com relação aos valores pagos como premiação. Além disso, estabelece-se que, no caso de dispensa de atleta em razão de gravidez ou maternidade, além de se considerar que não houve justa causa, sendo devida a cláusula compensatória à jogadora, será imposta à agremiação o impedimento de registrar novas atletas por um ano.

Considerações finais:

Como visto, a edição de Nova Lei Geral do Esporte pode trazer aprimoramentos ao status atual do direito desportivo. No entanto, é importante que não sejam esquecidos os avanços já percorridos no tema.

Alice Laurino é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo. Atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados. É conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membra da IB|A Académie du Sport. Escreve bimestralmente na Máquina do Esporte sobre o Direito Desportivo.

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