Quando Charles Miller trouxe a bola para o Brasil no fim do século XIX, não imaginava que ela se transformaria de uma simples distração da elite tupiniquim para a maior paixão nacional. Dos campos de várzea ao emblemático Maracanã, o Brasil não apenas jogou futebol: nós conquistamos o selo de inventores do futebol-arte com ginga, alma, emoção e cinco títulos mundiais.
Mas há algo que precisa ser dito: enquanto o mundo acelerava, nossa gestão não acompanhou essa profusão, e, hoje, temos poucos casos de clubes que são exemplos de gestão, dentro e fora de campo, como Palmeiras, Fortaleza, Flamengo e Botafogo, apenas para citar cases no modelo associativo e os recentes e bem-sucedidos projetos de Sociedade Anônima do Futebol (SAF).
Por muito tempo, confiamos apenas no talento. E por mais que ainda sejamos um celeiro de craques, a fórmula já não garante o pódio. O mundo entendeu que futebol se faz também com dados, estratégia, marketing de engajamento e muito profissionalismo.
Durante décadas, o futebol foi quase uma religião. Tinha hora marcada no domingo, trilha sonora de abertura e narradores que pareciam parte da família. Mas, aos poucos, as cadeiras começaram a esvaziar. Não no estádio, mas no sofá. A audiência caiu, e o interesse das novas gerações migrou para outras telas.
Foi nesse vazio que surgiu a Kings League. Idealizada por Gerard Piqué, a liga parece ter saído de um brainstorm maluco do TikTok: regras flexíveis, presidentes influenciadores, VAR ao vivo na transmissão e draft estilo NBA. Parece exagerado? Pode até ser. Mas é impossível dizer que não funciona.
Ao mesmo tempo, o futebol brasileiro, aquele do jogo aos domingos às 4 da tarde, observa a chegada de Carlo Ancelotti ao comando técnico da seleção brasileira. Isso é mais do que uma troca de comando; é um convite à mudança de visão sobre o futuro, baseado em um presente que parece estar em completa ebulição.
Essa mudança técnica coincide com uma renovação política dentro da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que acerta ao buscar resgatar a confiança da torcida e do mercado, mesmo que a liderança esteja nas mãos de um jovem profissional da bola e que comanda uma federação de pequena expressão em âmbito nacional. Talvez aí é que esteja a grande sacada desse movimento.
Sem vícios e sem apego a formalidades históricas e ao vazio de ideias dos dirigentes recentes da CBF, Samir Xaud, de 41 anos, novo mandatário da entidade mais importante do futebol brasileiro, precisará de muita coragem para mudar estruturas, valorizar as categorias de base e, sobretudo, aproximar o futebol brasileiro das novas gerações. Não por acaso, no mesmo passo em que surge o fenômeno da Kings League.
A Geração Z não abandonou o esporte; ela abandonou o formato. O problema não é o futebol; é a embalagem. E, nesse cenário, a Kings League não só atrai a audiência jovem como também cria um tipo novo de torcedor: o torcedor-participante.
Se o futebol clássico ainda tem dúvidas sobre como se reinventar e aposta na junção do jovem Xaud com o experiente e multicampeão Ancelotti, a Kings League chegou ignorando todos os protocolos e mexendo naquilo que parecia intocável: regras, formatos e narrativas. Cada partida é um laboratório de engajamento e espetáculo, e nisso a CBF pode se inspirar.
O que essa liga nos ensina é que não basta jogar bonito; é preciso saber contar a história desse jogo. É transformar o torcedor em protagonista, o lance em conteúdo, o campeonato em série de episódios.
O futebol brasileiro precisa aprender com isso. Temos os personagens, os talentos, as camisas mais pesadas da história. Só falta entender que, no século XXI, sem conexão com o público, não há paixão que resista.
A boa notícia é que temos todas as peças. Ancelotti no comando técnico e uma nova direção tentando reconstruir pontes em um país que respira bola como nenhum outro.
Isso nos leva a uma pergunta importante: e o futebol tradicional, vai reagir? A resposta pode não estar nas câmeras de 360º ou nas transmissões em 4K. Pode estar em voltar a ouvir o que as novas gerações têm a dizer.
A má notícia? O tempo está passando rápido demais. Enquanto discutimos o VAR, o algoritmo decide quem verá o próximo jogo. Enquanto debatemos se vale três zagueiros, perdemos o público que troca o canal para ver a próxima “trend”.
A Kings League talvez não seja o futuro, e Ancelotti tão pouco seja a única solução para reconquistar vitórias dentro de campo, mas esses dois movimentos são um ótimo ensaio sobre o que queremos para o nosso futebol.
Se o futebol brasileiro quiser continuar sendo um dos maiores espetáculos da Terra, precisa primeiro voltar a ser razão de interesse na mente das novas gerações.
Se quisermos voltar ao topo, precisamos voltar a jogar bonito dentro e fora de campo.
Reginaldo Diniz é cofundador e CEO do Grupo End to End