Realizada na última terça-feira (11), a reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado que investiga as casas de apostas esportivas acabou despertando uma polêmica tributária envolvendo o setor.
Senadores tomavam o depoimento do secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, que comentava sobre a dificuldade que o órgão encontra para agir em relação às plataformas que estão sediadas completamente fora do país. Ele passou, então, a discorrer sobre a situação das empresas que começaram a operar no mercado regulado.
“Aqueles que se apresentaram, que deram o rosto aqui, que abriram uma empresa no Brasil, nós vamos dar esse voto de confiança. Mas não estou dizendo também que eu vou deixar de fiscalizar o passado deles, porque, no passado, se eles tiveram renda aqui no Brasil, se tiveram faturamento no Brasil e estavam, de fato, no Brasil, eles devem tributos ao Brasil”, disse.
De acordo com Barreirinhas, se ficar comprovado que as casas de apostas obtiveram lucro no passado atuando no país, elas terão de pagar os tributos retroativos por essa operação.
“Isso vai passar obviamente pela fiscalização, e todo acusado vai ter a oportunidade de se defender. Na minha opinião, quem estava presencialmente aqui, materialmente, ainda que informalmente, responde perante o fisco brasileiro”, declarou.
Empresas alcançaram alta lucratividade antes da regulamentação
A arrecadação tributária tem sido um dos fortes argumentos utilizados para a regulamentação do setor de apostas esportivas. No fim do ano passado, uma estimativa feita pela Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) indicou que a regulamentação do setor poderia resultar em uma arrecadação de cerca de R$ 20 bilhões em impostos e taxas a partir de 2025.
A regulamentação do mercado de apostas no Brasil passou a vigorar, de fato, em janeiro deste ano. Conforme já noticiou a Máquina do Esporte, entre 2018 (quando o governo de Michel Temer deu autorização para as empresas de apostas atuarem no país) e 2024, as empresas conviviam com alta lucratividade, que poderia chegar a 50% do GGR, sigla em inglês para Gross Gaming Revenue, que equivale ao total arrecadado pelas casas de apostas, menos o valor pago aos apostadores e os impostos retidos nas premiações.
Graças aos resultados alcançados nessa fase pré-regulamentação, as casas de apostas tiveram condições de firmar patrocínios recordes a clubes de futebol e competições no país.
A tributação retroativa defendida por Barreirinhas atingiria, portanto, esses resultados alcançados pelas casas de apostas.
A partir deste ano, porém, a tendência é de redução dos lucros por conta dos tributos que recaem sobre o setor. A estimativa é de que, após cumprirem todas as obrigações fiscais, a margem final poderia ficar em 14%, no caso das grandes empresas, e 7%, para plataformas menores.
Setor critica proposta
O Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) disse considerar inadequada a hipótese de cobrança de imposto retroativo. Para a entidade, a eventual medida poderia estimular ainda mais um desequilíbrio no mercado.
“Estimativas atuais indicam que mais de 50% do mercado de apostas on-line opera na clandestinidade, sem qualquer fiscalização, arrecadação de impostos e, sobretudo, mecanismos de proteção ao apostador. O IBJR entende que a prioridade máxima das autoridades e reguladores do setor neste momento deveria ser o combate à ilegalidade, estimulando a canalização do mercado para o mercado formal e regulado, garantindo a competição justa e a arrecadação”, afirmou a entidade, por meio de nota.
Ideia esbarra em questões legais e materiais
Mas a ideia levantada pelo secretário da Receita Federal enfrentaria barreiras (que não seriam nada pequenas) para entrar em vigor.
A primeira delas é de ordem legal e reside no princípio da irretroatividade tributária.
Ele se baseia em um princípio mais amplo, chamado de irretroatividade legal, segundo o qual uma nova lei não pode retroagir de modo a prejudicar direitos adquiridos ou situações já consolidadas.
No caso, a finalidade é permitir ao contribuinte prever com antecedência os impostos que deverá pagar. Dessa forma, o principio da irretroatividade limita o poder do governo de tributar e determina que novas leis tributárias não podem alcançar fatos anteriores à data de sua vigência.
“A legalidade dessa ideia de cobrança retroativa é zero. O mercado foi regulado apenas agora. Não tem como a Receita fazer uma cobrança anterior”, enfatizou Gustavo Biglia, sócio do Ambiel Advogados e especialista em regulamentação de jogos e apostas.
Além da questão legal, a hipótese de tributação retroativa esbarraria em um problema de ordem prática.
“Como cobrar imposto de renda de uma empresa que não tinha CNPJ?”, questionou o advogado.
De acordo com ele, grande parte das plataformas que operaram no Brasil de 2018 a 2024 estavam sediadas em Curaçao, território insular do Caribe, que integra o Reino dos Países Baixos. Portanto, elas estavam fora do alcance das leis tributárias brasileiras.
Com a regulamentação, muitas casas de apostas optaram por constituir empresas com sede no Brasil, visando a operar de maneira legalizada. No ano passado, porém, vigorou um período de transição, para que as plataformas se adequassem à nova legislação.
“Os efeitos da regulamentação não retroagem. Por outro lado, o governo não terá condições de aferir qual foi o lucro desses sites sediados fora do país. A menos que decida fazer por arbitramento”, afirmou o especialista.
Na visão dele, a ideia de tributação retroativa pode ter sido motivada por uma expectativa de arrecadação que não estaria ocorrendo na prática.
“Hoje, as empresas de apostas optam pelo regime de tributação sobre o lucro real. O fato, no entanto, é que muitas delas têm optado neste momento por zerar as operações ou mesmo ficar no prejuízo, em vez de pagarem impostos. Para elas, hoje é mais vantajoso deixar de lucrar momentaneamente e investir mais dinheiro em publicidade, patrocínios e influencers, que servirão para tornar suas marcas mais conhecidas do grande público. Dessa forma, acaba sobrando muito pouco ou nada para ser tributado”, avaliou Biglia.